Autora: Cristina Gavazzoni, pós-doutoranda na UFRGS

Notas:

Uma epidemia se alastra pelo mundo. O sistema entra em colapso. A humanidade entra em desespero. Uma pessoa ou grupo de pessoas é incumbido da nobre tarefa de encontrar uma solução. Um insight e voilá, a cura é descoberta e estamos todos salvos.

Esse é um roteiro comum em filmes hollywoodianos e, ao que parece, é o que muita gente acha (ou espera) que vá acontecer na atual conjuntura. Não tem um dia que não somos bombardeados com manchetes do tipo “Pesquisadores encontraram a cura para o COVID-19” e imediatamente se inicia o alvoroço: Estamos salvos!

O caso mais recente é o da Hidroxicloroquina (HCQ) e ela veio com tudo que um bom roteiro cinematográfico pode oferecer: complôs da indústria farmacêutica, um plano diabólico do [inclua seu país de preferência aqui], a nossa salvação!

O presidente do Brasil, surfando na onda do mais novo êxtase coletivo, anuncia que o remédio já está sendo testado no Brasil1. O Ministro da Saúde anuncia que irá distribuir 3.4 milhões de unidades desse medicamento e de seu parente, a cloroquina, para o uso em pacientes em estado grave internados com COVID-192. Que ótima notícia não?

Pena que a realidade não é fã da sétima arte.
Vamos aos fatos.

Existem dois estudos diferentes circulando que “comprovam” a eficácia deste medicamento. Um deles foi publicado na Cell Discovery da Nature3, uma respeitada revista científica, e que estuda os efeitos do uso da Hidroxicloroquina contra o COVID-19, o que se omite, no entanto, é que ele é um estudo IN VITRO, ou seja, o estudo é feito num pratinho de vidro no laboratório e não em seres humanos e, sim, isso faz diferença. Não é sempre que um medicamento que funciona in vitro, funciona em seres humanos. Dito isso, estudos in vitro são essenciais pois nos fornecem a primeira evidência que um tratamento poderia funcionar em seres humanos, e deve continuar sendo investigado.

O segundo artigo intitulado “Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial4 se propõe a testar a HCQ no tratamento de COVID-19 em humanos, no entanto, as notícias não são tão animadoras quanto parecem.

Quando se pretende fazer uma publicação científica os autores do estudo preparam um texto e o submetem em uma revista. Esse texto é enviado para um grupo de especialistas que o analisam e emitem um parecer. O parecer é enviado para os autores que podem respondê-lo e/ou fazer os ajustes recomendados. Esse vai e vem entre autores e pareceristas continua até que o artigo é finalmente aceito para publicação ou negado. Entre outras coisas, esse processo evita que trabalhos com problemas metodológicos sejam publicados como científicos. Em decorrência da situação em que vivemos, muitos artigos têm sido publicados sem essa revisão ou com uma revisão rápida com a finalidade de difundir rapidamente o conhecimento sobre o COVID-19 mais rapidamente5. Essa medida, no entanto, permite que artigos com sérios problemas metodológicos sejam publicados como científicos e, esse é exatamente o caso desse segundo estudo.

O primeiro dos problemas desse artigo é a amostragem, ou seja, o grupo de pessoas que foram usadas para realização deste estudo. Vamos supor que uma pessoa chegue no Brasil e queira saber como a população brasileira como um todo é composta. Para isso ela pega como amostra a câmara dos deputados e obtém os seguintes dados:

  Brancos Pardos Pretos Outros Homens Mulheres
Câmara dos deputados 75% 20.2% 4.09% 0.71% 85% 15%


Com isso ela conclui que a cada 100 brasileiros 75 são brancos e 85 são homens. Agora compare com os dados reais da população brasileira obtida pelo CENSO de 2010:

  Brancos Pardos Pretos Outros Homens Mulheres
Câmara dos deputados 75% 20.2% 4.09% 0.71% 85% 15%
População Brasileira * 47.51% 43.42% 7.52% 1.55% 48.98% 51.02%

* Segundo o CENSO de 2010

A escolha de uma amostra ruim leva a conclusões erradas sobre o todo. Essa escolha é extremamente importante quando se faz pesquisa na área de saúde e, no entanto, nada trivial pois são inúmeros os fatores envolvidos. Para contornar esse problema o que se faz é escolher uma amostra grande pois quanto maior a amostra maior a chance de que ela represente mais corretamente a população como um todo.

A amostragem inicial neste estudo é de 26 pessoas sendo tratadas e apenas 16 pessoas no grupo de controle. Dessas 26 pessoas da amostragem inicial, apenas 20 participaram integralmente do estudo e contribuíram para as conclusões finais do artigo. As razões pela retirada dessas 6 pessoas do estudo são: um saiu do hospital, um teve náuseas, três foram para a UTI e um, pasmem, morreu. E isso nos leva ao segundo problema metodológico: o viés de confirmação.

Suponha que você tem uma teoria de que homens são mais altos que mulheres na média e você queira testar se ela é verdadeira. Para isso você escolhe um grupo de mulheres e um grupo de homens, mede a altura de cada pessoa que compõe esses grupos e obtêm o valor médio para homens e para mulheres. Porém o grupo de homens é composto apenas por jogadores profissionais de basquete e o de mulheres por ginastas olímpicas (uma péssima escolha de amostra, por sinal). Por óbvio resultado vai confirmar a sua hipótese inicial. É isso que o segundo estudo faz quando retira essas 6 pessoas da amostra.

Vamos fazer umas contas rápidas (desconsiderando o problema da amostragem reduzida). Segundo o estudo, depois de 6 dias de tratamento 70% dos pacientes (na amostragem de 20 pessoas) se curaram, ou seja, 14 pessoas. Se considerarmos os 6 pacientes que iniciaram o estudo, mas foram excluídos teremos o seguinte resultado: 53% se curaram depois de 6 dias, 11.63% pioraram e foram para a UTI e 3.84% morreu. Para fins de comparação o taxa de mortalidade média na China, no momento que escrevo esse texto, é de 4%, ou seja, na melhor das hipóteses, se desconsiderarmos todos os erros metodológicos envolvidos, o que esse estudo mostra é que o uso da HCQ não tem efeito nenhum na taxa de mortalidade. Note ainda que a taxa de mortalidade da China tende a cair com o tempo e, um estudo recente6 mostrou que, no final da epidemia, essa taxa deve ficar em torno de 1.4% na média.

Tá, mas e aqueles 53% que se curaram? Não foi devido a HCQ?

Para respondermos isso dentro do rigor científico o que precisamos fazer é comparar os dados do grupo em tratamento com os dados do grupo controle. E aqui nós temos mais um problema metodológico no estudo. Para afirmarmos sem sombra de dúvida que um a cura está associada a um tratamento específico precisamos separar duas amostras estatisticamente iguais, ou seja, dois grupos de pessoas similares na sua distribuição, que estejam recebendo exatamente o mesmo tratamento com a exceção do medicamento que está sendo testado. Se, no final, compararmos esses grupos e observarmos que o grupo que usava o medicamento se curou mais rápido aí podemos associar a cura com a medicação.

O grupo de controle desse estudo é composto, segundo o próprio artigo, por pacientes que recusaram o tratamento ou pacientes que obedeciam ao critério de exclusão e pacientes em outros centros médicos (Patients who refused the treatment or had an exclusion criteria, served as controls in Marseille centre. Patients in other centers did not receive hydroxychloroquine and served as controls). Os critérios de exclusão são alergia a HCQ e algumas doenças pré-existentes. Note que pacientes com comorbidades apresentam mais risco caso contraiam o vírus.

Ou seja, enquanto que o grupo de teste é composto em sua completude por pessoas sem comorbidades recebendo tratamento médico sob supervisão dos autores, o grupo de teste é composto por um misto de pessoas que têm comorbidades, não aceitaram o tratamento ou cujo o tratamento não está sob controle dos autores. Pouco detalhe é dado quanto ao tratamento dado ao grupo controle exceto que esses pacientes receberam tratamento sintomático e antibióticos. Os medicamentos usados não foram explicitados.

Além desses problemas já mencionados, em certa altura do texto do artigo os autores escrevem:

In contrast, one of the patients under hydroxychloroquine and azithromycin combination who tested negative at day 6 post-inclusion was tested positive at low titer at day 8 post-inclusion.

Tradução: Em contraste, um paciente sob tratamento combinado de hidroxicloroquina e azitromicina que testou negativo no dia 6 pós inclusão foi testado positivo em baixa concentração no dia 8 pós inclusão.

Os dados clínicos apresentados no artigo, bem como os gráficos de análise são referentes apenas aos 6 primeiros dias.

A verdade é que a ciência não pode afirmar, nesse momento, se a HCQ funciona ou não para o tratamento do Covid-19. Esse artigo não tem potencial para alterar esse status pois, com a finalidade de obter um resultado positivo, cometem diversos erros metodológicos e de análise.

No texto os autores nos apresentam uma razão para terem passado por cima de todo o rigor científico: “Por razões éticas e porque nossos primeiros resultados são tão significantes nós decidimos compartilhar nossos achados com a comunidade médica, dada a necessidade urgente para uma droga efetiva contra o SARS-CoV-2 no atual contexto de pandemia” (For ethical reasons and because our first results are so significant and evident we decide to share our findings with the medical community, given the urgent need for an effective drug against SARS-CoV-2 in the current pandemic context.).

Discordo que os resultados são significativos. Discordo ainda mais que a publicação desse artigo seja ética. O contexto de pandemia não pode servir como pretexto para ignorarmos o básico de se fazer ciência. O rigor científico existe por uma razão, para garantir a eficácia e a segurança de um tratamento e isso é especialmente essencial nos tempos em que vivemos. Como o doutor em medicina Luis Cláudio Correia, em seu texto intitulado “Hidroxicloroquina: o dia em que a ciência parou”7, o rigor científico não serve à ciência. O rigor científico serve à sociedade e aos indivíduos.

Por fim, quero deixá-los com uma boa notícia. Existem milhares de cientistas mundo afora trabalhando seriamente, com todo o rigor exigido, para encontrar uma cura, uma vacina, para diminuir o número de mortes e os impactos dessa pandemia e que farão questão de espalhar as boas novas sempre que possível afinal, são, também eles, parte desse mundo.

E lembrem, se há solução, ela está na boa e rigorosa ciência.

Referências

  1. https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1243502255606824963?s=20 

  2. https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46601-cloroquina-podera-ser-usada-em-casos-graves-do-coronavirus 

  3. LIU, Jia et al. Hydroxychloroquine, a less toxic derivative of chloroquine, is effective in inhibiting SARS-CoV-2 infection in vitro. Cell Discovery, v. 6, n. 1, p. 1-4, 2020. 

  4. GAUTRET, Philippe et al. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial. International Journal of Antimicrobial Agents, p. 105949, 2020. 

  5. https://www.weforum.org/agenda/2020/03/speed-science-coronavirus-covid19-research-academic 

  6. WU, Joseph T. et al. Estimating clinical severity of COVID-19 from the transmission dynamics in Wuhan, China. Nature Medicine, p. 1-5, 2020. 

  7. https://medicinabaseadaemevidencias.blogspot.com/2020/03/hidroxicloroquina-o-dia-em-que-ciencia.html?spref=fb&m=1 


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